O Pós COVID-19 no Transporte Público de Passageiros – uma visão muito na primeira pessoa

O Pós COVID-19 no Transporte Público de Passageiros – uma visão muito na primeira pessoa

Vivemos um dos momentos em que a sabedoria popular e o bom senso, os decisores políticos e a competência técnica, vão ter de andar de mãos dadas para descobrir as soluções que melhor se adaptam aos desafios que vão surgindo. Reagindo à solicitação de dar a minha perspetiva sobre o impacto do COVID-19 nos sistemas de transporte público de passageiros, em vez de um texto técnico, com números e análises sobre eles identificando tendências e suas possíveis consequências, optei por arrumar um conjunto de reflexões comuns, mas que nesta circunstância me parecem mais apropriadas e sinceras. Este é um artigo totalmente na primeira pessoa.

Só sei que nada sei é a expressão que melhor se aplica ao meu estado atual. Tenho a certeza de que algo vai mudar, mas qual e quão impactante será o futuro, ainda está para mim por descobrir. Tenho participado em discussões múltiplas, desde um grupo de amigos (discussões que muito contribuíram para estas reflexões) a webinars vários. Não consigo ainda concluir até onde vamos, mas permitiram-me consolidar algumas convicções. A primeira, é que vamos viver dois momentos muito marcantes e temporalmente distintos:

  • o primeiro, de curto prazo, em que vamos ter que testar a nossa capacidade de agir e reagir, praticamente de dia para dia, e se estou descansado quanto a essa capacidade com base nas provas entretanto já dadas por todos os atores envolvidos e na resposta do público em geral, preocupa-me mais a resiliência necessária para se manter essa atitude e capacidade adaptativa de forma continuada por um período que pode ser longo; e
  • um segundo momento, subsequente, mas que tem de ser preparado desde já, em que temos que ter a capacidade de aproveitar as mudanças, que são impostas exógena e endogenamente ao sistema de transportes, para oferecer serviços que respondam efetivamente às necessidades futuras e que possam ser a coluna vertebral de uma melhor e mais sustentável mobilidade.

Assim sendo, tenho a certeza que, quaisquer que sejam o nosso ponto de partida e o nosso estado de espírito, devemos manter uma perspetiva otimista.

Depois da tempestade vem a bonança, já que acredito que o transporte público de passageiros vai encontrar soluções para os desafios que se lhe colocarão. As mensagens de curto prazo são muito alarmantes – quebra de procura muito acentuada e eventual retoma lenta devido ao receio da sua utilização sem condições objetivas de manutenção do distanciamento social, transferência modal com consequente crescimento da utilização do transporte individual com o mais que provável ressurgir rápido de condições de circulação muito degradadas e todas as consequências ambientais diretas, etc. –, pelo que têm de ser avaliadas e contrariadas de forma tão inteligente quanto enérgica. No entanto, a necessidade de manter uma atenção muito direta e interventiva no curto prazo, não nos pode tolher a visão que, após o curto prazo de grande urgência, vêm outros tempos e outras oportunidades que não podemos enjeitar.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, pois se os impactes no transporte público de passageiros serão diversos, nem todos serão de sentido negativo, embora esteja convencido que haverá uma redução de procura, não totalmente devido ao próprio transporte público e às respostas que este sistema pode dar, mas porque as alternativas se tornaram (e tornarão) muito mais visíveis. Se a rotina de comprar localmente se vai manter (ainda que naturalmente menos vincada que no período de emergência), reduzindo o número e a distância das deslocações e se a passagem da “tele-urgência” (expressão cujo autor não consigo identificar, mas que representa bem a nossa capacidade adaptativa a uma circunstância completamente nova e exigente) para o teletrabalho também irá permitir consolidar práticas e rotinas de trabalho com menor necessidade de deslocações, também haverá ações que permitirão uma melhor gestão do sistema de transporte e das cidades, bem como uma maior consciência global que a nossa ação individual e coletiva pode representar ganhos ambientais importantes levando à alteração do comportamento de alguns (já não acredito em vagas de fundo, mas acredito no grão a grão). Por outro lado, apostas pessoais em novas mobilidades (já bem antigas), como o andar a pé ou de bicicleta, podem e terão um impacte positivo a diferentes níveis, que não só na mobilidade.

Quando a manta é curta… As projeções económicas da Comissão Europeia divulgadas hoje (à data em que escrevo, 06 de maio 2020) apontam para uma contração do PIB português de 6,8% em 2020, felizmente seguida de uma expansão de 5,8% em 2021. Perante este cenário, facilmente se percebe que será necessário fazer escolhas porque não haverá capacidade financeira para atender a todas as solicitações e alguns setores ficarão menos cobertos. A mobilidade esteve presente em todos (ou quase) os programas eleitorais municipais, e acredito sinceramente que tal não foi uma moda, mas sim a perceção da sua realidade e importância. Assim, da mesma forma, acredito que vai ser possível ter políticas públicas que nos trarão uma melhor solução para as questões da mobilidade e que estas políticas serão desenhadas de forma a que a sua aplicação seja feita no nível devido (para mim, os municípios e as comunidades intermunicipais), criando articulação entre as diferentes políticas de gestão, dando o Estado Central o respaldo financeiro possível. Agora só acredito no sucesso se a sua aplicação no terreno se fizer por quem sente o problema, até porque não antevejo muitas medidas que possam ser transversais a todo o território nacional; se as cidades médias e grandes podem ver na gestão do estacionamento ou na criação de uma rede ou redes de modos ativos ferramentas óbvias, decerto que os municípios mais pequenos se interrogarão sobre a necessidade, por exemplo, de colocar em prática uma oferta de transporte flexível, ou medidas de gestão da procura concentradas em determinados pólos geradores ou ainda, na reformulação da suas redes de transporte escolar, reforçando ainda mais o seu papel estruturante como base de uma sustentabilidade financeira em muitos casos muito difícil de atingir (e sim, não quero entrar na discussão da contratualização, embora esta pudesse ser uma oportunidade para reformular algo, pensar de novo, e muito rápido, sobre modelos de financiamento e de equilíbrio económico do contrato, prazos, exigências de material circulante, exigências – para mim críticas – de informação de gestão e suporte para os contratos de segunda geração, formas de monitorização, entre outras preocupações). E também é bom que se diga que existem políticas públicas que não exigirão grande envelope financeiro direto (ainda que possam ter impacte na atividade económica ou profissional); estou a pensar, por exemplo, na maior flexibilização dos horários de funcionamento de um conjunto alargado de atividades.

No aproveitar é que está o ganho, no sentido lato do termo aproveitar, pois estou certo que vão existir várias soluções de sistemas inteligentes de transportes que poderão, por exemplo, tornar a gestão de fluxos muito mais eficaz e permitirão dar prioridade aos modos que a devem ter; soluções de bilhética ainda mais inteligente, de lógicas tarifárias melhor adaptadas aos novos tipos de procura de transportes públicos – acho quase inevitável que comecemos a discutir títulos de transporte diferentes do tradicional, contemplando utilizações múltiplas não consecutivas –, de soluções de logística urbana e de novas lógicas de distribuição de encomendas (tendência que naturalmente crescerá com a crescente tendência de comércio eletrónico), etc..

Quem vier por bem, que venha também, é a forma como gostaria de terminar. Numa situação em que muita coisa será diferente, a partilha de experiências, a capacidade de ouvir, agir e reagir em função da avaliação que se faça é fundamental para encontrarmos um novo normal que, sendo mais ou menos distante do que conhecíamos, permita ajudar na lógica de uma mobilidade mais sustentável e mais amiga do ambiente.

06 de maio, 2020

Faustino Gomes
Engenheiro Civil, CEO da TISpt – Transportes Inovação e Sistemas


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